Para quem se instala no devir, a duração aparece como a própria vida das coisas, como a realidade fundamental. As Formas, que o espírito isola e armazena em conceitos, não são, então, mais que vistas tomadas da realidade mutável.
— Henri Bergson ("Memória e vida")
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| Obra: "The Hozu River", 1888 - Seiho Takeuchi |
A duração, a essência do tempo, é devir absoluto. A realidade sempre mutável é impermeável por conceitos e esquemas teóricos que tentam nada mais que fixá-la, amarrá-la para que não escape de nosso controle. O espírito (entendido aqui no sentido da tradição moderna do pensamento ocidental, como sinônimo da "consciência", da "mente racional"), que produz esses esquemas, funciona como uma espécie de "armazém das Formas".
As Formas, isto é, os conceitos (os produtos de nossas intelecções, nossas categorizações racionalizantes, ou ainda, os modelos de organização racional das nossas experiências), são descritas por Henri Bergson (1859-1941) como o meio principal através do qual nós esquematizamos a realidade; o meio pelo qual apreendemos o real e imprimimos sobre ele categorias de orientação espacial, tomando esta dimensão como a essência da própria realidade.
Bergson argumenta que o espírito - trabalhando como "armazém das Formas" - quando tomado como o instrumento derradeiro de compreensão da realidade, hipostasia o espaço como a dimensão fundamental do Ser. É somente ao excluir o tempo que as Formas são possíveis, que são sequer concebíveis. Nesse sentido, Bergson polemiza todo o campo da epistemologia (a teoria do conhecimento), pois opõe à ideia do espaço como paradigma filosófico a ideia do tempo como seu substituto. E a qualidade mais simples e significativa do tempo é o fato de que ele passa.
Portanto, ele conclui a partir disso que o espírito, e as Formas que ele produz, funcionam, no seu nível mais elementar, como espécies de dispositivos ou ferramentas de natureza sobretudo pragmática. Isto é: as Formas conceituais, nesse sentido amplo designado por Bergson, atuam como o eixo de orientação intraexistencial do ser humano.
Ele indica com isso que o próprio empreendimento do "compreender" a realidade significa fundamentalmente uma estratégia para nos orientarmos nela. Antes de ser um distanciamento laboratorial ou uma suposta visão de lugar nenhum (absolutamente imparcial, objetiva e portanto imutável, atemporal), a compreensão, executada pela "inteligência" (termo usado por Bergson que pode ser sinônimo de "razão") é uma postura existencial em que o homem se vê obrigado a conjurar um eixo de equilíbrio, a fim de evitar a angústia, a dor, o sofrimento - todos elementos assinalados pelo tempo, isto é, pelo devir.
Em outras palavras, "compreender" e "apreender" "a realidade" se trata de negar sua própria realização: o tempo (ou devir) é o movimento de realização do real. O real não é um objeto morto que precisa ser exumado e então destrinchado numa mesa de laboratório. Prendemos o real quando presumimos estarmos fazendo sua autópsia. O real é um movimento em si mesmo: não é um substantivo, mas um verbo. O devir é a verbalização do real.
Absorver a realidade numa Forma conceitual é encerrá-la segundo uma concepção prévia do próprio mundo. Somos vítimas de uma ingenuidade engenhosa (sem, contudo, abandonar sua cegueira) ao perseguirmos um conceito, na tentativa de encaixotar a totalidade do ser em um apanhado de palavras lançadas ao vento.
Heráclito, certa vez, foi contestado por Aristóteles por estar cavando um buraco na areia com uma colher de chá, com a qual ia até o mar buscar água para encher o buraco, e disse que estava tentando transferir o mar para o buraco. Aristóteles, indignado com o que vê e ouve, indaga o velho: "Você não está vendo o tamanho do buraco e a imensidão do mar? Será que pode haver alguma proporção entre o volume das águas e as dimensões de uma colher de chá?" Heráclito responde com outra indagação: "e a sua cabeça será maior que o buraco na areia? E o ser será menos vasto do que a imensidão do mar? E num conceito poderá caber tudo que é o ser de uma colherinha de chá?"
O ser é incapturável, ele está à solta, é o fugitivo mais procurado, está no topo de todas as listas de todas as polícias do saber. Eis então um âmbito inefável, que nenhuma palavra consegue caber em si, que nenhuma análise é capaz de comensurar: o âmbito da vida. A vida do espírito, de que tanto falavam os pensadores da Lebensphilosophie (A filosofia da vida - movimento intelectual alemão no final do século 19 e no início do século 20 ), é antes de tudo o espírito da vida. Somente abdicando de todo critério de utilidade imediata é que podemos atingir um contato genuíno e absoluto com o ser.
Não há outra finalidade na vida senão vivê-la. E isto quer dizer: o pensamento deve estar à serviço da vida, não como um instrumento de prazer, como uma ferramenta que arquiteta novas formas de gozo, sem qualquer escrúpulo. A aproximação da vida, para Bergson, é dada por uma via de pensamento que ele chama de intuição. A intuição não é só um exercício espontâneo e arbitrário de pensamento.
Muito pelo contrário, a intuição é um método rigoroso, talvez o mais deles, pois ela visa questionar a colocação dos problemas, questionar nossas intenções, nossas pressuposições, nossos preconceitos, ela é a corregedora da polícia do saber. Seu trabalho é fiscalizar os trabalhos do pensamento, se estão corrompidos por interesses particulares, se está alienado por critérios dogmáticos. A intuição é o vigilante noturno do saber. É este método perspicaz que Bergson designa propriamente como Filosofia.
O que está em jogo não é tão somente saber se estamos aplicando um método científico corretamente - não é a sua intenção limitarmo-nos a uma teoria abstrata do conhecimento. O questionar filosófico vai até os fundamentos, até as raízes de uma teoria do conhecimento. Somente visualizando a condução de uma teoria, "conhecemos" o drama de seus problemas, e é só conhecendo o drama dos seus problemas que colocamos em questão nossos eixos, o que inevitavelmente nos desequilibra e causa náuseas. Mas é no esforço de um questionamento autêntico que somos capazes de mergulhar na vida do espírito e colocá-la em curso no sentido do espírito da vida.
O que Bergson tenta fazer no bojo de sua obra é revitalizar a dignidade filosófica da Metafísica, porém desvinculada do modo como a tradição a articulou (como a tentativa ambiciosa de raptar o ser e embalá-lo na generalidade vazia de um conceito total, para o qual não haveria resto; que compreenderia o ser em sua totalidade, mas que, na visão de Bergson, circularia infinitamente em torno de seu objeto sem nunca de fato adentrá-lo).
A tradição filosófica ocidental, em especial na Idade Moderna (comumente considerada desde Descartes, que marca o início de um estilo particular de filosofar, até Nietzsche, que o encerra e dá ensejo a um outro - novo - tipo), pode ser descrita, seguindo o pensamento bergsoniano, como um período que consistiu num conjunto variado das maneiras mais criativas e engenhosas de traçar de modo definitivo o arcabouço lógico-conceitual que apontasse seguramente as coordenadas que indicariam, de uma vez por todas, a identidade permanente fundamental entre o pensar e o ser.
Esse arcabouço foi conjurado, por cada filósofo que tentou satisfazer as exigências dessa empresa intelectual absoluta, cada um à sua maneira, através da construção metódica e cuidadosa de um sistema teórico, isto é, o edifício intelectual que desvelaria a ossatura do mundo, por assim dizer, a espinha dorsal do Ser, reproduzida com precisão pela reconstrução retroativa do esqueleto do próprio pensamento.
Tomando a consciência como a imagem do mundo, os filósofos projetariam racionalmente o mundo ao identificar a lógica fundamental do funcionamento da consciência, isto é, revelando as condições de adequação entre sujeito e objeto, entre consciência e realidade. Essa concepção mecânica da mente e do mundo, e sua equivalência (sendo a mente o espelho da natureza), que está no coração da Metafísica Moderna, serviu de base para a legitimação desse modelo filosófico, que tem como função erguer esse sistema compreensivo do mundo.
Na esteira dessa tradição, um sistema, composto de conceitos fundamentais e pressupostos lógicos teóricos (chamados de axiomas), serviriam supostamente como a derradeira Forma que estenderia a ponte indestrutível capaz de assegurar o trânsito livre e a correlação firme e indissolúvel entre o sujeito-pensamento e o objeto-mundo.
Ou, em outros termos, para repetir o tema, o objetivo desse modelo tradicional de Metafísica, à qual era reduzida a Filosofia, era, por assim dizer, "desenhar a planta do Ser": conceber a Forma teórica-conceitual fundamental, que indicasse a identidade absoluta entre o pensamento, de um lado, e o ser - o real - de outro.
É dentro desse contexto histórico (contra essa tradição, a seu modo) que Bergson se insere, no qual propõe essa outra forma - a autêntica forma - de realizar a Metafísica: uma Metafísica que não deseja apreender essa identidade, que não se pauta pelo desejo inflamado de se assegurar do mundo, de se abrigar na comodidade de nossas representações, de se proteger do devir, da mudança inerente ao fluxo temporal da realidade; uma Metafísica, pelo contrário, que deseja coincidir com esse fluxo, que reserva ao esforço filosófico não a tarefa de se adequar aos paradigmas normativos de eficácia vigentes ou de interagir com o mundo já, de antemão, com o pretexto de converter suas abstrações em andaimes que visam sustentar e auxiliar o processo de tradução do conhecimento em ação (cumprindo sua finalidade última como servo da ação), e sim incorporar essa postura de simpatia com a natureza temporal do ser, que, portanto, pretende não reproduzir o atual, ratificar o normal, mas abrir-se ao diferente, à criação, estado bruto do devir; uma Metafísica, não da Forma, mas do Movimento.
Note-se: aqui, e Bergson deixa isso explícito, não se trata de impor a Filosofia, a Metafísica como Intuição, como a alternativa superior à ciência e ao conhecimento prático. Bergson recusa qualquer adesão ao dogmatismo. Sua visão não é de que descobriu o jeito correto de pensar e que agora pode destituir todos os outros, e sim que indicou uma outra - nova - dimensão do pensar.
Dimensão esta que não é mutuamente exclusiva em relação à dimensão do pensamento comum, da ciência especializada, da longa e admirável tradição da filosofia e da ciência dedicadas à sistematização do real, com o intuito de mapear o mundo, conferindo-nos a habilidade cada vez mais desenvolvida de nos guiarmos e orientarmos nele, que nos fornece essa espécie de bússola do mundo e nos permite navegarmos nele. A intuição, como ele diz, "é mais que ideia", porém, para se articular efetivamente, ela deve "cavalgar ideias". (O Pensamento e o Movente, p. 45)
Com isso Bergson nos diz que a diferença da metafísica (da intuição) e da ciência é de método, não de qualidade. Seus objetos são diferentes. A matéria (entendida aqui em sentido amplo) cabe à ciência; o espírito, à metafísica. Desse modo, Bergson indica que a metafísica, tendo por objeto o próprio espírito e tendo a intuição como seu método, consiste essencialmente num movimento autorreflexivo, um exercício do espírito sobre si mesmo. Como ele próprio expressa:
[a metafísica] começará por expulsar os conceitos já prontos; ela também se confiará à experiência. Mas a experiência interior não encontrará em parte alguma linguagem estritamente apropriada. Por força, terá que voltar ao conceito, acrescentando-lhe no máximo a imagem. Mas então será preciso que alargue o conceito, que o flexibilize e que anuncie, pela franja colorida com a qual o envolverá, que ele não contém a experiência inteira.
(O Pensamento e o Movente, p. 48)
Diferentemente da metafísica moderna, Bergson se afasta do dogmatismo e recusa ter a totalidade encerrada no seu método ou no produto deste. A filosofia, para ele, não compreende esse esforço de abarcar o todo numa fórmula, num conceito ou num sistema teórico. A tarefa derradeira da filosofia é outra:
(...) a verdade é que se trata, na filosofia, e mesmo alhures, de encontrar o problema e, por conseguinte, de pô-lo, muito mais do que resolvê-lo. Pois um problema especulativo está resolvido assim que é bem posto. Entendo com isso que a solução existe então imediatamente, ainda que possa permanecer escondida e, por assim dizer, encoberta: só falta, então, descobri-la. Mas pôr o problema não é simplesmente descobrir, é inventar. A descoberta versa sobre aquilo que já existe, atual ou virtualmente; era portanto certo que haveria de surgir cedo ou tarde. A invenção confere ser àquilo que não era, ela poderia não ter surgido nunca.
(O Pensamento e o Movente, p. 54)
O pensamento filosófico, por outra via, entra, assim como a ciência, na experiência, e portanto mantém uma relação íntima e profunda com a vida. Uma Metafísica do Movimento, tendo a intuição como seu método e o espírito, o próprio homem na sua inserção no mundo, a própria vida, como objeto, implica que seu trabalho é, como o tempo, contínuo e sempre inacabado. Ela não busca conclusões definitivas (ou definições conclusivas), mas interrogações incisivas: ela busca manter-se atinada à fértil problematicidade inerente ao espírito filosófico.
A rigorosidade da intuição vem dessa pretensão filosófica de "desmascarar" os problemas, investigá-los, verificar se são bem postos, ou se são falácias conceituais, ou seja, se estão presos a paradoxos e contrassensos, se os pressupostos que o tornam possíveis não são redundantes, vazios ou estéreis. E, a partir daí, recolocar o problema, encontrar (ou produzir) um problema melhor, que resulta dessa disposição espiritual afinada à intuição: que não deseja compreender, mas engendrar. (O Pensamento e o Movente, p. 68)
Referências:
BERGSON, Henri. O Pensamento e o Movente. Tradução de Bento Prado Neto. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
BERGSON, Henri. Cartas, Conferências e Outros Escritos. Tradução de Franklin Leopoldo e Silva, Nathanael Caxeiro. São Paulo: Abril Cultural, 1984.
SILVA, Franklin Leopoldo e. Bergson e Jankélévitch. Estudos Avançados, v. 10 (28), 1996.
SILVA, Franklin Leopoldo e. Bergson: intuição e discurso filosófico. São Paulo: Loyola, 1994.

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