O dever do artista





Cena do filme "Meia-noite em Paris", escrito e dirigido por Woody Allen


O dever do artista é talvez o maior de todos: ele precisa encontrar uma cura para uma condição não patológica. É a condição mesma de nossa existência: sua inevitável contingência. Em meio ao sofrimento, crueldade, má-fé, injustiça, e o poder devastadoramente sublime da natureza, o artista se encontra no olho do furacão. Como enfrentar a dor? Como enfrentar o medo? Como escapar do abismo de nossa insignificância?

O dever do artista é responder essas perguntas. Mas antes que você imagine o artista se fazendo de raciocínios lógicos complexos buscando uma perfeita equação para resolver todos os nossos problemas, já digo que não é assim que ele trabalha. O trabalho do artista é de uma dureza desigual. O que ele busca não é olhar sob a perspectiva mais favorável ou benéfica, pois o que ele busca não é utilidade ou funcionalidade como a positividade da ciência. O que ele busca está antes e além disso: trata de embarcar num olhar único e avassalador. Um olhar que espante e ao mesmo tempo ilumine. É um olhar que combate o terror da escuridão a abraçando. É o olhar que visa não a felicidade ou o contentamento, mas a libertação. A verdadeira liberdade que nos coloca junto a nós mesmos mais uma vez. Não é a liberdade pensada ou teorizada, é a liberdade sentida. Ela carrega consigo uma enorme dor, um enorme peso e um desequilíbrio descomunal, pois ela nos priva de nossas muletas que nos fazem nos acomodar em nossa posição, em nosso lugar, em nosso pensamento, um pensamento de convencimento, de persuasão. Essa liberdade, pelo contrário, é um exercício de profunda intimidade.

A dificuldade do artista está precisamente em ele trabalhar com um problema cuja resposta não se encontra, um enigma com peças faltando. Seu esforço é até de uma natureza paradoxal: ele busca dizer o indizível. O artista, assim como o filósofo, o cientista, realiza seu ofício através da linguagem. Mas diferentemente do cientista e do filósofo (não sempre, como explicarei mais a frente), o artista não tenta dizer o que diz. As palavras, as imagens, os movimentos, os sons... nunca estão lá para conceberem um significado comum e corriqueiro, isto é, sua linguagem não é literal. Seu privilégio, de certo modo, é que a linguagem que utiliza é a metáfora.

Mas o cientista pode fazer uso de metáforas, você pode arguir. Sim, ele pode, mas seu uso é meramente intermediário e utilitário; seu objetivo é esclarecer uma ideia ou um conceito. Da mesma forma o filósofo, ao menos de costume, segue essa tradição. Os meios são vários, mas o fim parece essencialmente o mesmo: esclarecer. O artista, por outro lado, não apenas faz uso da metáfora, ele é a metáfora, ele se faz metáfora. Não é apenas seu meio, mas também seu próprio fim.

A metáfora, portanto, para o artista, é o sentido mesmo de seu esforço. Não é só um instrumento de seu trabalho, mas seu próprio trabalho. Podemos compreender, então, que o artista está em constante conflito, pois o que ele tenta é traduzir o intraduzível, apreender o inapreensível. A matéria, para ele, não passa de uma alegoria, um símbolo que representa algo além do que aparece. Sua expressão coincide com o inefável.

Posso dizer também, que o trabalho da filosofia, de forma muito similar, caminha pelas mesmas águas. Camus dizia que o verdadeiro problema filosófico é o suicídio - decidir se vale ou não a pena viver. De fato, como ele mesmo propõe, todos os outros problemas filosóficos derivam deste. E na falta de uma resposta objetiva, o dever do filósofo se torna o do inefável. Sua busca é pela própria existência e todas suas possibilidades de transcendência, todas as formas que possam nos indicar o absoluto, mesmo que por vislumbres ou cifras (como dizia Jaspers) que são de uma obscuridade única, pois não nos iluminam da mesma forma que Platão metaforizou o conhecimento. Seu ofício, como o do artista, é aquele de capturar o sentido da existência (ou seu vazio). Eles se movem... para além do dizível, para além do puro intelecto.

Você pode até pensar que é um trabalho de esperança. Até certo ponto, você não estaria errado. Mas creio que é, como propõe Comte-Sponville a partir de Freud, um trabalho de luto. Luto das suas esperanças, quando a realidade se incumbe de mata-las. É um apelo de reconhecimento do que é e do que não é. E a partir disso, decidir o que pode ser feito, e o que resta esperar. É no fim um trabalho de alegria e não de tristeza - o luto se faz habitando e atravessando o sofrimento para reencontrarmos a sequer possibilidade de alegria. Em paralelo - ou em conjunto - sua sabedoria jaz com o tempo, seu maior senhor e o pai de sua condição.

É como Jankélévitch coloca: "Os verdadeiros mistérios não são aqueles nos quais mergulhamos cada vez mais por um aprofundamento dialético, mas os que se mantêm inteiros em sua efetividade pura". Seguindo essa citação, Franklin Leopoldo explica: "A filosofia compromete-se com o mistério não para tocar as suas profundezas, o que seria o mesmo que anular a sua realidade, mas para dar-se conta de sua presença. Esta aparente simplicidade da presença íntegra de algo que não podemos objetivar inteiramente por estarmos nele, e não diante dele, esconde de fato a complexidade intraduzível da intuição."

É então o tempo, que é a própria essência da realidade, o que permite que as coisas se criem e se destruam; ele mesmo vai se construindo, vai compondo as coisas que são e que vem-a-ser. O encontro com ele, contudo, é, como diria Bergson, uma fusão - intermitente, e até rara. Mas é isso mesmo que fazem os artistas: fazem a experiência da coincidência.

No que concordam os existencialistas, que "a existência precede a essência", concordarão os vitalistas, que "a transição precede a permanência". É disso que trata o movimento do tempo, é disso que trata a sabedoria da vida, quando coincidimos nele. É disto que trata o dever do artista: a transformação. E aqui se destaca mais uma vez o paradoxo de sua ação, pois mesmo mirando o indizível, ele ainda tenta dizê-lo. Mesmo coincidindo na captura da transitoriedade, do movimento temporal, é na sua obra que ele tenta congelá-lo - está entranhado na própria ideia de captura. Ele, a seu modo, se transforma na tensão temporal em que se insere.

Ao tentar responder as perguntas, o artista se depara com a ausência de respostas. E é precisamente neste momento que ele realiza um salto, um salto de fé em direção ao abismo sem fim que é nossa existência. Ele zarpa para um mar de incertezas, sim, mas ele não navega para saber, ele navega para ser. Esse é o dever do artista: ser, inequívoca e desesperadamente, ser.

O antídoto para o vazio da existência está em existir. Uma radical audácia de viver.
E se é verdade que a filosofia é uma arte de viver, como gosto de pensar, então assumo esse dever com toda sua infindável carga.

A grandeza do homem consiste na sua decisão de ser mais forte que a condição humana. 
          — Albert Camus

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