A vontade de superar um afeto não é, em última análise, senão vontade de um outro ou de vários outros afetos.
— Friedrich Nietzsche, "Para além do bem e do mal"
Veja que quando se fala de Nietzsche, não temos o costume de enquadrá-lo em uma escola ou corrente de pensamento. Não dizemos que Nietzsche era racionalista ou empirista, idealista ou realista. Quando falamos dele, não tratamos de categorias epistemológicas-metafísicas. Isso porque a primeira (e talvez mais importante) consideração de Nietzsche que se é preciso ter quando tentamos entendê-lo, é que ele, diferentemente dos seus predecessores modernos, não investigava (ou ao menos não privilegiava) as condições do conhecimento ou o fundamento metafísico último da realidade, em busca de uma certeza racional da verdade do mundo. Isto é, ele não pensava em termos de epistemologia, nem de metafísica (embora Heidegger discorde, e ele tinha lá suas razões, mas isso não vem ao caso), mas de ontologia.
Que isso quer dizer? Quer dizer que ele pensava nas condições existenciais do homem. Nietzsche pensava a existência humana, não necessariamente no seu fundamento, mas em suas vísceras. Nietzsche opunha o homem ao próprio homem. E nem ele, sobretudo ele, escapava desse aguilhão. Crítico de corpo e alma, fazia isso também opondo si próprio a si mesmo.
O problema, então, a questão que estava em jogo para o pensamento de Nietzsche diz respeito à própria relação que o homem sustenta em sua existência. Pensava nisso enquanto filósofo e crítico sistemático da cultura e da história e pensava nisso enquanto sujeito, ou melhor, enquanto não-sujeito - não (tão-só) enquanto Nietzsche, mas enquanto devir-Nietzsche.
Ler Nietzsche, não somente pelo conteúdo de sua escrita, mas também (e sobretudo) pela forma em que escreve, é ler um pouco de si. Lê-lo "para valer": só com uma investida e um investimento - investir-se, abrir-se, e tentar, na medida de nossas capacidades, ser forte o suficiente para aguentar o tranco. Para lê-lo, é preciso vontade-de-Nietzsche, quer dizer, é preciso ter essa sede e fome de acontecimento. Leio-o como um caçador de acontecimentos. Trata-se de se submeter a uma leitura das proximidades e distâncias que mantemos com o mundo. Em uma palavra: trata-se de humanizar-se.
Dizer que Nietzsche joga no tabuleiro ontológico e não no epistemológico-metafísico, implica que ele pensa em termos de afetos ontológicos, isto é, existenciais. Ele lê o mundo concomitantemente à sua participação e inscrição nele. Nietzsche ensina, com sua honestidade brutal, que é impossível ser crítico (se essa tarefa for levada à máxima realização de sua essência, a saber, sua consumação como um pensar com o martelo, como uma crítica dos valores, do corpo, da vida, de nossos vínculos e desenraizamentos no e com o mundo) é impossível ser crítico, eu dizia, sem sofrer as consequências espirituais de uma tal atividade. Não à toa ele declarava que o filósofo era o sinal de grande perigo para seu povo e seu tempo. O que ele quer dizer com isso é: de um pensamento profundo e autêntico (que brota de uma interpelação da própria vida, da própria existência, como coloca mais tarde Merleau-Ponty), ninguém sai ileso.
Heidegger chegou a dizer em uma vibração nietzscheana a seu modo: "Quem profundamente pensa, deve profundamente errar" (Da experiência do pensar). "Errar" não é o contrário de "acertar", de estar "certo". Errar é estar em errância. Errar é vagar, é se comprometer absolutamente com um descomprometimento absoluto. É não ter um caminho delineado ou um destino certeiro - eis o verdadeiro oposto de errância. O errante é um flâneur ontológico.
O compromisso que assume o pensador não é para com um pensamento fundamental ou um suposto fundamento determinante do pensamento, e sim para com o próprio caminho de pensamento. Pensar não é seguir um método, uma fórmula, cumprir requisitos. Pensar é errar. O pensamento é um caminho, não um destino.
Nietzsche, paradoxalmente, segue e realiza à risca a sentença (que julgo humildemente ser a mais importante) de Kierkegaard: "A vida não é um problema a ser resolvido, mas uma realidade a ser experimentada." Então conduz tal experimento. Leva-o até às últimas consequências e faz dele toda uma ciência, que a chama de "gaia ciência"!
O pensador (ou crítico) deve estar consciente das amolações inerentes a essa jornada. Esse, inclusive, é o teste máximo para saber se você está apto ou não para a filosofia (o que, diga-se de passagem, não é nenhum critério moralista para determinar quem é melhor ou pior, mais forte ou mais fraco): bancar o seu fardo. Isso, bancar. Não apenas suportá-lo, mas, como Camus imaginava Sísifo, fazê-lo com prazer. É preciso sentir que pertenço àquela tarefa e aquela tarefa me pertence. Novamente, e sempre, trata-se do mesmo jogo jogado por Nietzsche: o jogo do pertencimento/deslocamento (ou enraizamento/desenraizamento) existencial jogado no campo dos afetos ontológicos.
O espírito livre de Nietzsche não era um rebelde, um libertário inconsequente que sai bradando seu livre-arbítrio, preso no vazio e insípido jogo do "faço porque quero, quero porque posso e posso porque quero". Para bancar a liberdade do espírito é preciso trabalhar constantemente. Nenhum espírito é verdadeiramente livre se não estiver disposto a pagar as contas oriundas de seu esforço. Negar e se afastar do mundo vigente em que os outros estão vem ao custo de sua solidão - é com ela que se paga.
As figuras tipicamente nietzschianas não são epistemólogos ou cientistas - pensadas a partir dos problemas do conhecimento e não da vida - mas o convalescente, o nostálgico, o poeta, o escritor - o artista de modo geral. Nietzsche, ao pensar a vida, não quer extrair dela uma lei, uma regra, um dogma. Ele extrai dela a beleza, a dor, o peso, a leveza, suga-a "até a polpa" (Thoreau), isto é, espreme e extrai tudo que torna a vida digna de ser vivida como uma obra de arte.
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